O ALCE DESENHADO pelo homem paleolítico nas paredes da caverna, madonas que só podem ser descobertas em ocasiões especiais, altares privados nas celas dos monges, bem como estátuas divinas que só podem ser vistas pelo sumo sacerdote, representam, de modo claro, o papel da arte como instrumento de magia. Nos primórdios da humanidade, a obra de arte se inseria nas diferentes tradições por meio do culto. O valor único da criação artística, seu “modo de ser aurático”, na expressão de Walter Benjamin, se liga intimamente a esta origem inicialmente mágica, posteriormente religiosa, e sempre submetida a um ritual.
Olav Velthuis, teórico do mercado da arte, diz que não deve ser mera coincidência a consagração do modelo “cubo branco” nas galerias de arte mundo afora. Nesse espaço tão limpo, tão austero, é mais fácil evocar uma atmosfera elevada, distante das distrações mundanas e desprovida de referências ao comércio. É somente depois, na “sacristia” dos escritórios das galerias, que é feita a passagem desta esfera etérea para a negociação financeira explícita e o preenchimento de cheques.
No clássico ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin aponta a existência, no interior das próprias obras, de dois pólos que se confrontam mutuamente: os valores de culto e de exposição. O alce e a madona acima citados se inserem firmemente no pólo do culto, bem como a estátua do deus grego que se encontra fixa no interior do templo que lhe é dedicado. Qualquer quadro, por sua vez, reforça o pólo da exposição se comparado a um afresco ou a um mosaico, que historicamente o precederam como forma de arte. O valor de culto se refere ao fundamento teológico da arte. Já o valor de exposição anuncia a emancipação das obras de arte do contexto teológico. A criação artística se transfere para uma esfera cada vez mais laica, culminando, no final do século XIX, com a mundaneidade radical das fotografias e do cinema, nos quais o valor fundamental é a capacidade de multiplicar a exposição em várias reproduções, anulando a distinção entre original e cópia e fazendo recuar, ainda de acordo com Benjamin, a aura da obra de arte original, aquilo que dela emana, seu “aqui e agora” incapaz de ser reproduzido por meios técnicos.
Mas por que evocar tal distinção em um texto dedicado a uma coleção particular? Há mais ou menos dez anos tenho o privilégio de conviver com André Stock e Roberto Calmon, o que me permitiu acompanhar, “de camarote”, a formação da coleção que hoje se apresenta a um público mais amplo. Nas muitas vezes em que fui ao apartamento que abriga a coleção para jantar com os dois amigos, tornou-se uma espécie de ritual privado, logo na chegada, a apresentação das novas aquisições. No começo tudo parecia despretensioso e eu, na condição de observadora, oscilava entre a admiração pela dedicação dos dois ao “colecionismo” (termo que só fui compreender, na verdade, algum tempo depois) e um certo espanto em relação a tudo o que envolvia o processo: a lida com as galerias, os preços, o contato com os artistas, o trabalho delicado de armazenagem e exposição das obras no apartamento, os cuidados de conservação.
Somente agora, quando sou convocada a escrever sobre a série de obras que fui vendo surgir na vida de meus amigos, me dou conta do quanto eu mesma fui me direcionando para esse campo levada pelas mãos dos dois. Sem perceber, a alegria ao encontrar uma obra que me agradava num canto da casa, a surpresa causada pelas negociações pouco convencionais – comparadas a de outros produtos – que envolveram sua compra, a satisfação de ver surgir uma espécie de universo paralelo formado de Corpos, letras e alguns animais, tudo isso certamente foi me modificando também e me direcionando para o estudo acadêmico do universo da arte.
Quando me ponho a recordar as impressões primárias dessas visitas, lembro do tempo em que fiquei parada diante dos cabelos louros da moça da fotografia de Edgar Martins, incapaz de voltar à conversa antes de ser libertada por aqueles fios. Segue-se a ocasião em que acompanhei a compra dos desenhos em fundo preto, com escrita colorida, de Cabelo. A admiração sempre renovada diante de obras de José Damasceno, com suas pequenas partículas elementares e coloridas. As mandalas eróticas de Fernando de La Rocque, seu retrato do meu ídolo José Mujica. As figuras sem rosto, de pesadelo, de Mônica Piloni. A xícara lewiscarrolliana de Marta Jourdan. O vôo na nuvem de Suzana Queiroga. Tudo o que veio depois, o pensamento, os artigos, as pesquisas, foram e são elaborações dessas experiências sensoriais. Como diria Freud, processo secundário.
RETOMANDO O FIO SOLTO que deixei alguns parágrafos acima, não posso deixar de me perguntar qual seria o valor dominante das obras que habitam o apartamento dos meus amigos, o de culto ou o de exposição? Em princípio, dado que a maioria em nada remete a fundamentos teológicos (a não ser que os animais sejam relacionados à Arca de Noé…), elas teriam como pólo dominante seu valor de exposição. Afinal, tanto as esculturas quanto as pinturas podem ser transportadas, emprestadas, vendidas, exibidas onde eles quiserem. Em sua maioria, únicas – salvo um ou outro múltiplo e algumas fotografias – todas elas teriam preservado, até onde isso é possível no mundo das cópias obsessivas e compartilhadas (no mundo do Instagram), sua aura. Mantida, portanto, quase intacta a aura, se quisermos ser fiéis a Benjamin, as obras da coleção teriam resguardado também um certo valor de culto, acrescido do valor de exposição.
Penso que as obras da Coleção Calmon-Stock, mesmo agora que serão acessíveis na forma da reprodução em catálogo, preservarão para sempre seu valor de culto. Valor este legitimado pelo modo como, discretamente e sem pretensão, ela foi sendo formada. Sem ceder ao glamour e às tentações mundanas do mundo da arte, sem ostentação, André e Roberto foram colocando uma obra ao lado da outra. Assim foi se desenvolvendo uma linguagem própria dos dois colecionadores, um estilo que Omar Salomão e Fernando de La Rocque bem traduziram no título Corpos, letras e alguns animais…
Conviver com a coleção significava, até a criação do catálogo, privar da intimidade dos colecionadores e ver materializada em quadros, esculturas e objetos, aquela razão sem razão de que é feito o inconsciente de cada um. O velho Freud colecionava estatuetas antigas enquanto comparava o aparelho psíquico à cidade de Roma, na qual estão escondidas várias outras cidades, subterrâneas, passadas e, ao mesmo tempo, muito presentes. Tal qual o conjunto de camadas que fazem a Roma contemporânea, segundo o mestre de Viena, todas as nossas vivências convivem no inconsciente: desde nossos desejos de infância até as experiências que tivemos nas últimas 48 horas.
No apartamento dos dois colecionadores, camadas, construções e ruínas de sensações, afetos e pensamentos coabitam, formando um todo vivo e integrado. A Coleção Calmon-Stock, independente do que diriam Benjamin, Freud, ou qualquer outro que só é meu amigo por meio dos livros, liga sonhos aos pensamentos de vigília, encontrando um canal de expressão em telas, papéis, madeira, argila, pó de tijolo, porcelanas, papier maché e canudos coloridos.