COLECIONAR É ACUMULAR não apenas objetos, mas também informações sobre esses objetos e seu universo. E histórias idem. E tem de ter amor para formar uma coleção, para perseverar nesse caminho, contra todos os entraves que um iniciante pode encontrar no mercado, mesmo que hoje em dia isso esteja mudando. Acredito que uma coleção particular deva refletir o gosto do colecionador. A não ser que o objetivo seja ganho de capital ou validação social. A delícia de colecionar é fazer por si; pode-se até levar em conta a opinião de um ou outro especialista, mas a palavra final deve ser sempre do colecionador. Talvez porque meu primeiro contato com o ato de colecionar tenha sido um contato afetuoso, minha tendência é apreciar as coleções que refletem o gosto dos colecionadores e não o estabelecido pelo “tempo” que estamos vivendo. Até porque esse tempo/gosto muda, e se a escolha não tiver sido pelo afeto, pode ser que o colecionador se encontre em uma situação em que possua obras de que não gosta, e não consiga se desfazer porque o mercado – o mesmo que estabeleceu aquele gosto – mudou e não as absorve mais. Amor é importante.
Por trás de cada uma das obras da Coleção Calmon-Stock existe uma história; e todas essas pequenas histórias combinadas formam uma grande história – de colecionismo, de mecenato, de produção, de fetiche… E de amor! Essa coleção existe não só para o deleite dos seus donos, ou para um círculo fechado de pessoas próximas aos dois. Ali também há projetos que foram possíveis graças àquela aquisição particular, viagens que foram possíveis graças àquela aquisição particular, outras obras que foram possíveis graças àquela aquisição particular.
Conheci André e Roberto quando morei no Rio de Janeiro, trabalhando na Galeria Laura Marsiaj, onde os dois compraram algumas das obras presentes na coleção. Era sempre muito bom receber a visita de ambos – como é bom receber a visita de pessoas que realmente gostam de arte e com ela se envolvem! Não me lembro exatamente qual foi a primeira obra que os dois compraram na galeria, mas é muito bom passear pela casa e reencontrar trabalhos que adoro, e fico feliz em saber que esses trabalhos moram com pessoas queridas – porque quando gosto muito de determinada obra, e não posso tê-la, gosto de pensar que, se não está comigo, está com alguém querido ou que posso visitar de vez em quando.
As escolhas de André e Roberto nunca eram óbvias. Estranho, forte, difícil… Nada parecia ser uma questão para os dois quando gostavam da obra. Eu imaginava que era um mix do gosto dos dois, mas um dia, conversando, André me contou que eles também levavam em conta muitos outros gostos: o dos artistas, do galerista, de outras pessoas amigas. No processo de construir o olhar, foram absorvendo outros olhares para formar essa coleção de Corpos, letras e alguns animais unidos por muito afeto. Cito como exemplo os trabalhos do Cabelo. São trabalhos incríveis do artista, mas não são os óbvios ou, como diz outro colecionador querido, “O Abaporu do artista”. Quando vejo alguém interessado em comprar apenas um exemplo do que é a produção de um artista, muitas vezes deixando de lado outros trabalhos muito interessantes, ou mesmo quando parece que o mercado coloca uma “cerca” ao redor da produção, por querer mais do mesmo, tornando difícil para o artista experimentar novas coisas, todos saem perdendo. Perde o artista, que não experimenta, perdem as coleções, que ficam todas iguais. Na Coleção Calmon-Stock isso não acontece, então muitas vezes somos surpreendidos pelas obras escolhidas. Uma boa surpresa.
OS COLECIONADORES se relacionam não só com os objetos que estão ali presentes, vivendo com eles – porque nada está guardado em caixas ou depósitos, longe dos olhos –, mas também com os artistas que produziram essas obras. Muitos deles. Por isso, não me espanta que, quando pensaram em organizar a coleção, tenham dividido essa tarefa com dois desses artistas.
Por todos os lugares, não só nas paredes, até nos lugares mais inusitados, entrar na casa é uma caçada ao tesouro e a qualquer momento você é surpreendido por partes desta coleção, que não inclui apenas as obras, mas outros objetos, brinquedos, livros, muitos livros. Às vezes fico em dúvida se determinado objeto é ou não é uma obra de arte, e milhões de associações se tornam possíveis.
Pergunto qual foi a primeira obra da coleção e descubro que foi o Atlas, uma fotografia do carioca Milton Montenegro. Atlas pertencia à geração divina dos seres desproporcionais, monstruosos, a encarnação de forças da natureza que atuava preparando a terra para receber a vida e os humanos. Juntando-se a outros titãs, pretendia alcançar o poder supremo e atacar o Olimpo, combatendo Zeus e seus aliados. Zeus triunfou e deu a Atlas o castigo de sustentar para sempre, nos ombros, o céu. Por conhecer o caminho das terras distantes, na cartografia, passou a representar a coleção de mapas da Terra, e por ter sustentado o céu, deu-se o nome de Atlas à 1ª vértebra da coluna cervical – uma referência ao gigantesco peso que fora condenado a carregar.
Uma “base” interessante para a Coleção que viriam a formar nos anos seguintes…