COLEÇÃO

TEXTO

Coleção Calmon-Stock. Vida, arte e complexidades do tempo do agora.

Michelle Bobsin Duarte

Como seres naturais que somos, nossas capacidades atuais são resultado de uma complexa dinâmica evolutiva inerente ao fenômeno vital. O surgimento da vida em nosso planeta, conforme afirmou a bióloga Lynn Margulis, modificou totalmente as condições atmosféricas da Terra, o que possibilitou o desenvolvimento de uma história evolutiva que, até aqui, traz como característica principal a diversidade de formas de ser vivo. Entre as diversas expressões da vida, nós humanos adquirimos pela via da técnica moderna um grande poder de modificação das condições terrestres.

Atualmente, essa diversidade de modos de existir da vida está ameaçada por nós mesmos(as), por motivos que conhecemos. As pressões destrutivas sobre a biosfera colocaram em curso a sexta extinção em massa das espécies[1]. Tal é a nossa situação, a ponto de grande parte dos(as) cientistas do clima, assim como alguns pensadores e pensadoras da contemporaneidade, estarem de acordo com a tese que postula que a humanidade tenha se tornado uma agência geológica devido ao alcance de nossas ações, a chamada Era do Antropoceno.

Esse cenário contemporâneo de crescentes modificações do modo humano ocidental de existir (que se torna cada vez mais global), reforça a tese de grande parte da tradição de pensamento do ocidente, de gregos antigos a contemporâneos, que atribui a marca da nossa espécie à racionalidade. Contudo, esse quase “axioma” da civilização ocidental, que postula a nossa principal diferença em relação aos outros viventes, foi contestado pelo filósofo alemão Hans Jonas. Dotado de uma sensibilidade aguçada sobre o mundo, algo que lhe proporcionou uma visão não antropocêntrica sobre o fenômeno da vida, Jonas encontra na capacidade humana para a imagem a diferença antropológica. A capacidade para reproduzir ou criar uma imagem inaugura, de acordo com o filósofo, a dimensão conceitual do entendimento da realidade, dado que a representação pictórica demonstra uma relação não prática com os objetos, e que manifesta o interesse pela imagem mesma, independentemente de sua utilidade.

É interessante notar que essa relação não prática com o mundo pode ter surgido há cerca de 45 mil anos atrás[2], ou seja, não é um privilégio evolutivo do homo sapiens e sim algo que já estava presente no homo pictor, nosso ancestral que pintava cavernas.

Se os registros das pinturas rupestres demonstram o alvorecer da dimensão conceitual dos nossos ancestrais através da comunicação de elementos do cotidiano, como animais e outros humanos, a arte contemporânea nos comunica sobre as bolhas dos multiversos particulares que expressam as vivências e as relações do agora. A imagem, seja de uma pintura, fotografia, vídeo, escultura ou mesmo uma performance, descortina uma série potente de interpretações.

Pensando por esse viés, a coleção de arte pode ser, entre outras possibilidades, uma espécie de narrativa das narrativas do nosso tempo. Neste sentido, a coleção Calmon-Stock é uma reunião de imagens-conceito que formam um discurso plural que registra a diversidade expressa pela arte contemporânea brasileira.

Entre as mais de 300 obras da coleção, a planta em um coco de sapucaia pode nos remeter a uma parte da ancestralidade brasileira que luta e resiste pela própria existência há 521 anos. A moeda de metal com duas figuras lúgubres da nossa história, de um lado um ditador do passado, do outro um genocida do presente, reforça a atenção quanto à fragilidade da nossa democracia, ao mesmo tempo que nos lembra que é preciso resistir, algo que o povo do artista da planta em coco de sapucaia sabe muito bem. A colagem digital de Moara Brasil Tupinambá reúne elementos que ilustram muito bem a complexidade de ser vivo neste “tempo das catástrofes”, para parafrasear Isabelle Stengers. Já o vídeo Comfort, de Marcus Paulista, liga-se às obras mencionadas de maneira quase inusitada (creio que nada é completamente inusitado nesta coleção) ao trazer para o campo visual um movimento quase molecular, que nos lembra o DNA, fonte de toda e qualquer forma de vida.

Tal é a potencialidade das imagens da Coleção Calmon-Stock, que a própria ideia de coleção de arte transborda para outros lugares, ocupando também o espaço da experimentação poética comprometida não só com o registro estético, mas também com o registro político do nosso turbulento tempo, figurando, assim, como resistência da própria arte em um país avassalado pela administração mortífera de um ser ignóbil. Resistência que se expressa na paisagem plural composta pela coleção ao reunir obras que expressam a diversidade de existências no Brasil contemporâneo em meio ao caos político e à ameaça climática. Isso reforça a ideia de que a arte pode ser um dispositivo de questionamento do status quo rumo a uma existência não fascista

Michelle Bobsin Duarte

MICHELLE BOBSIN DUARTE é Doutora em Filosofia pela PUC Rio, na linha de pesquisa em Filosofia e a Questão Ambiental. É membra do Grupo de Pesquisa Hans Jonas do CNPq e do GT Hans Jonas da ANPOF. Atualmente é professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRRJ.

[1] Ver Gerardo Ceballos, Paul R. Ehrlich, Peter H. Raven. Vertebrates on the brink as indicators of biological annihilation and the sixth mass extinction. Proceedings of the National Academy of Sciences, Jun 2020, 117 (24) 13596-13602; DOI: 10.1073/pnas.1922686117.

[2] Ver Adam Brumm et al. Oldest cave art found in Sulawes. Science Advances, nº 7, 2021. DOI: 10.1126/sciadv.abd4648. Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.abd4648.

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